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A lado agricultor do manezinho

 


Nesta seção encontraremos alguns aspectos relacionados a atividade agrícola desempenhada pelo manezinho. Contudo, providencialmente, as culturas serão tratadas na seção "Café Sombreado" onde dedicarei importância maior. 

O titulo Carro de Boi foi escolhido pela relevância deste implemento para o pequeno agricultor, para que superasse um pouco as agruras da lida diária. 

Preferi aqui, portanto, utilizar uma bibliografia antiga, pois nela acredito ter encontrado a melhor definição aos itens que quis explorar.

          

            


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Alambique

     

O alambique (aparelho destilatório) ficava comumente colocado a um recanto da seção inferior dos engenhos de cana, assentando sobre pequeno forno encostado à parede que dava para o terreiro, através da qual passava o tubo do capitel, que, quando em função o aparelho, era umedecido constantemente pela água das calhas, trazida de uma cachoeira ou nascente de morro. Mas em muitos engenhos de pequenos recursos e exíguas comodidades, o alambique, por ocasião de se fazer a destilação da aguardente, era montado provisoriamente em qualquer ponto do terreiro, junto as calhas, sobre três ou quatro pedras, entre as quais se fazia o fogo em grossos toros de lenha.

Tal aparelho compõe-se de duas partes principais - a cucúrbita ou caldeira, e o capitel. A primeira é um vaso bojudo de cobre, da capacidade de 40 medidas (104 litros), mais ou menos, com uma boca de 0,7m de diâmetro; a segunda é de barro, com a quarta parte das proporções daquela, esférica e inteiriça, munida de um tubo grosso afilando para extremidade denominado serpentina, tendo uma boca da circunferência da boca da cucúrbita para bem se justapor a esta, e uma forma que representa perfeitamente a de um cachimbo gigantesco. Estas duas peças unidas e fechando-se uma a outra, completam-se, formando um só todo.

A aguardente fabrica-se com a garapa posta a fermentar dentro de um cocho durante uma ou duas semanas, findas as quais se acha reduzida a uma espécie de licor vinhoso. Neste estado era levada a caldeira, onde começa a destilação, feita a fogo lento, recolhendo o capitel os vapores alcoólicos que se desprendem da cucúrbita e os conduzindo pelo tubo ou serpentina para uma vasilha receptora - o porongo, um grande catuto onde os mesmos vapores se condensam formando a cachaça. É sobre a serpentina que se despenha ininterruptamente água das calhas, que serve de refrigerante à aguardente na passagem para o porongo. Pronta a cachaça, deve marcar 21º pelo areômetro de Baumé ou Cartier.

A aguardente era em geral bem fabricada na Ilha, tanto como no continente, especialmente a de cana miúda, que tinha grande saída no Estado. Os lugares da Ilha onde a aguardente foi mais afamada pela sua qualidade eram as freguesias do Ribeirão e Lagoa. A vendida nestas localidades, as mais procuradas eram também, provavelmente, as mais caras. Além da aguardente, fabricava-se nestes engenhos, o espírito de vinho ou álcool comum, que é a cachaça restilada e marcando 36º.

               


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Carro de boi

     

O carro de boi, pela sua estrutura arcaica e curiosa, e especialmente pela sua importância na vida rural merece ser mencionado. Sabe-se do valor que tem o veículo, pois que marca ou caracteriza o primeiro momento da circulação das riquezas nas agremiações sociais, desde a formação simples das tribos aos grandes organismos com­plexos das nacionalidades.

O carro de que vamos tratar é ainda perfeitamente o tipo do carro primitivo inventado pelos povos de origem ariana. Simples e rude como é dir-se-ia de fácil descoberta, quando surgiu a necessidade do veículo para o transporte das primeiras produções agrícolas dos tempos remo­tos. Entretanto, só para se chegar à invenção de uma de suas partes - a roda, a humanidade teve de evoluir por milhares e milhares de anos.

O carro de boi catarinense compõe-se de um estrado longo de quatro metros, dois dos quais formam a parte estreita que se chama o cabeçalho, em cujo extremo assenta a canga onde se jungem os bois, que ficam um a cada lado, tendo a haste de permeio. O estrado reproduz o contorno perfeito, em ponto pequeno, de um convés de navio visto do alto, pois é reto no arcaveiro e morre em proa para o cabeçalho, descrevendo ai como um ângulo ou curvas de bochechas: tem ao centro, por debaixo, e faceadas a uma e outra banda, com as beiradas onde correm os fueiros, duas chumaceiras de 1 m de altura, onde enfiam os cocões que são quatro grossos dentes de madeira rija (em geral guaramirim-ferro) que se apertam por cunhas, entre as quais se move o eixo. Este - quase sempre de peroba vermelha - é cilíndrico no lugar onde trabalham os cocões e mais grosso e oitavado ao centro: sustenta a cada extremo uma roda, fixa, cheia, com altura de 0,4m seguramente, contando-se da periferia até o ponto de encaixe do eixo. As duas rodas, assim armadas, denominam-se o rodado.

O estrado do carro é amplo, em torno de 1,1m, e feito de tabuado de lei repregado sobre um esqueleto de três paus dispostos longitudinalmente, cruzados por outros em sentido transversal, prendendo-se todos ao pau-mestre do cabeçalho que vai, em forma de lança, do extremo onde se põe a canga até a curva do estrado. Em duas filas de orifícios de 10cm de diâmetro mais ou menos, fincam-se os fueiros - espécie de porretes lisos e direitos da altura de 1 metro, e em número de cinco a cada lado. Estes fueiros servem para amparar a carga e segurar a sebe que neles se coloca, quando os carros têm de conduzir mandioca, frutos ou cereais.

A canga é urna peça forte de madeira, de 1,20m de comprimento, larga e denteada ao centro pela parte de cima, que desenha para a oposta a forma vaga de uma chumaceira onde trabalha a ponta do cabeçalho, que se lhe prende quando jungidos os bois, por meio de uma grossa cavilha de peroba e de um denso estropo, feito de numerosas guascas retorcidas de couro cru. Dessa parte larga da canga saem dois braços recurvos, cada um com dois canzis e duas brochas, onde os bois enfiam o pescoço para o tiro. Completa o carro o muchaco, uma espécie de estaca da altura do estrado, que serve para manter suspenso o cabeçalho, quando não se acham ainda cangados os animais e se carrega o veículo.

Todo o carro de boi caminha chiando, quando carregado; mas se conduz família, como no tempo das festas e das farinhadas, ou se leva o morto para a sua última morada, mantém-se sempre silencioso. O chiado do carro se produz apertando-se fortemente as cunhas dos cocões e untan­do-se o eixo, nessa parte, com graxa para não queimar, conforme procedem os carreiros, lançando mão dessa substância, que todos trazem num pequeno escaninho colocado junto às chumaceiras e chamado o "porta-sebo".

Tal é o carro de boi da ilha, perfeita reprodução do plaustrum da Roma antiga, como o descreve Oliveira Martins:

“O plaustrum, carro de boi do Lácio primitivo, consistia em um estrado de tábuas assente em um eixo com duas rodas cheias e fixas. Sobre o estrado colocavam os latinos um cesto de vimes (sebe), como na benna dos gauleses, como ainda hoje fazem no Minho para as cargas de adubos agrícolas. Ao eixo chamavam stridens porque chiava ao longo dos caminhos, cantando a acompanhar os bois como ainda hoje sucede nos nossos campos”. (Regime das Riquezas, págs. 78-79).

         


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Engenhos

        

Os modos e a tecnologia de produção rural experimentaram mudanças radicais no início do século XX.

Nos países desenvolvidos, nada mais resta das primitivas e tradicionais formas de elaboração primária, enquanto que, nos países em desenvolvimento, as mudanças são recentes e coexistem as atividades tecnológicas modernas com as formas mecânicas artesanais. Essas formas semi-artesanais, ou aquelas que utilizam equipamentos com tração de "roda d'água" ou com a força de um animal oferecem pequena margem de ganho e baixa produtividade e são ladeadas por outras máquinas movidas pela energia elétrica. Muitas vezes o equipamento antigo e tradicional é substituído, substituindo a tração animal por motores elétricos.

E dentro desta transformação que se situam os engenhos de Farinha de mandioca da Ilha de Santa Catarina.  

    

Origem

   

Os engenhos, denominação consagrada pelo uso tradicional, começam a aparecer com a colonização açoriana (1748 a 1756). Tanto foi difundido seu uso, que estatísticas de 1794 registraram cerca de 382 desses mecanismos de produção rural, mais de uma centena dos de "cana" (para açúcar e cachaça) e atafonas diversas.  

Busquei comprovar; considero que com êxito, que sua tecnologia foi resultado de uma inovação (idealização de um sistema mecânico para elaboração da farinha de mandioca), da criatividade do homem açoriano ao se adaptar no mister da produção da farinha de mandioca por ele até então desconhecida - que era produzida na colônia de forma rudimentar e manualmente.  

Para o momento histórico do século XVIII, foram os engenhos máquinas "moderníssimas" e de grande produtividade, pois substituíam os primitivos métodos indígenas que recorriam à força do homem.  

O engenho é, assim, um equipamento industrial, numa combinação de engrenagens, confeccionadas de maneira, que operam com eixos de 90º entre eles, articulando a roda "sevadeira" com a "entrosga ou bolandeira ou roda grande", e outros dois paralelos, com ampliação de 15 vezes para aumentar a velocidade de giro, entre a roda bolandeira e o "rodete" que movimenta a "hélice" de abanar o forno.    

  

O Processo de Produção

    

Os passos de produção da farinha, quando o engenho entra em atividade, (tradicionalmente farinhava-se nos meses que não têm R na grafia: maio, junho, julho  e agosto) são:  

 

a)  arrancar (colher) a mandioca na roça;

b)  transportar as raízes para o engenho por meio de carro de bois, ou no serão do cavalo;

c)  raspar (descascar) a mandioca e "jogo do capote", (tarefa confiada às mulheres que a executavam com cantorias e acerto de compadrio);

d) lavar a raiz para ficar branquinha e limpa;

e) sevar (ralar) a raiz, utilizando a roda "sevadeira", com o engenho sendo movido pelo boi. A "ralação" cai dentro de um coxo em baixo, e bastante aguada, formando a massa crua e molhada, requerendo enxugamento;

f)  colocar a massa molhada dentro do "tipiti" e levar à prensa para o enxugamento mediante prensagem;

g) esfarelar e peneirar a massa crua, e seca para retirar a "carneira" (refugo);

h) neste momento, aproveitar a massa crua para o preparo do beiju ou biju;

i) peneirar e colocar a farinha crua no forno para ser torrada, operação que é denominada de forneamento. Para evitar que a farinha adira ao tacho, e se queime, a hélice de abanar é colocada em movimento, fazendo esvoaçar uma névoa branca de polvilho que cobre cabeças, chapéus e o telhado do engenho, anunciando: - "ali estão farinhando". A farinha está pronta para ir para o paiol.

A qualidade da farinha será determinada pela sua cor - quanto mais branquinha melhor; pela sua textura quanto mais fina e mais homogênea mais saborosa; e pelo teor de umidade - devendo não ser muito seca nem torrada demais, deixando-a arenosa.

        

Os tipos

    

São vários os tipos de engenho e que são identificados pelos sistemas de transmissão da força e do movimento. Os mais freqüentes são os seguintes:

de Calha, de Centro ou de Molhe.

É o mais original de todos pois ajusta-se em locais pequenos e apertados, pois todos os movimentos ficam articulados no centro estando o boi preso na alinanjarra, girando em torno do mesmo, e inclusive do sevador e do forneador (aliás seva e forneação são operações que podem ser realizadas concomitantemente). E o modelo mais difundido na Ilha de Santa Catarina, por ser mais inteligente, utilitário e compacto.  

De Mastro com duas variações.

O boi que é a força motriz, trabalha à distância, sendo o movimento transmitido por um veio (eixo) longo e superior; giratório e que se engrena na sevadeira ou no forno, cada qual em local diferente. Na segunda variação, a transmissão é processada por meio de polias e guascas ou seja, correias, e não engrenagens de madeira.

Os de Caranguejo.

Chamarrita ou Pouca Pressa. Esses são manuais e dispõem de duas "máquinas" separadas, sendo uma a da sevadeira e a outra aciona o forno. Todos os dois são movidos pela força de um ou dois homens. A do forno se constitui de uma meia engrenagem que aciona um rodete no meio da hélice de abanar, e que funciona com movimentos de vai-e-vem.

No engenho, cada peça, por menor que seja, tem denominação própria bem como os personagens humanos que basicamente são o Sevador, o Prensador e o Forneador. Todos trabalham conversando ou cantando.

Estando a farinha pronta, e antes de entrar para o paiol, onde pode ser conservada até por dois anos, é ela medida em "alqueires", medida de volume. Toma-se por sistema de medida o alqueire, que corresponde a 13 litros, sendo as subdivisões, a meia, a quarta, a metade de meia quarta, a metade da metade de meia quarta.

      


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Baleeira

        

Foram os portugueses os grandes navegadores e os grandes definidores das técnicas de construção naval, especialmente entre os séculos XVI e XVIII. A Escola de Sagres foi um marco universal e responsável por toda a revolução náutica, porque passou o mundo, naquele momento, no que diz respeito à navegação marítima.

Por trás da tecnologia escolástica e oficial, sempre vicejou o tradicional fruto da criatividade popular. Pode-se afirmar que a escolástica aprimora aquilo que foi o produto da tecnologia informal que o homem comum, através de suas experiências de vida, desenha apenas na sua mente e a passa de geração em geração sem estar gravada em “pranchetas”.

Toda a hidrodinâmica da baleeira é símbolo da tecnologia tradicional, pelo menos entre os pescadores e baleeiros na Ilha de Santa Catarina. Faz parte de seu folclore ergológico.

     

A Construção

      

Tudo começa com a preparação da “quilha”. É ela a mestra que vai definir tamanho e tonelagem da embarcação. Deve ser utilizada uma madeira duríssima, quase sempre a peroba.

Após a quilha pronta, prepara-se os cadastros, tanto o de “proa” como o de “popa”. Preparando os “bordos”, amarram-se os ”talabordões” que fazem o desenho (formato) da boca, tudo em nível, e assim será possível ir desenhando, cortando cada “caverna”, e construindo o “cavername”, pois cada um deles tem desenho e medidas próprias. Suas curvaturas darão a forma, ou linhas de hidrodinâmica das laterais da baleeira como também o numero dos taboados. Para garantir resistência, cada “caverna” deve ser cortada em madeira com curvas naturais.

Dizem os antigos que, os baleeiros iam até a mata escolher os “paus” (troncos de árvores) que apresentassem as melhores curvas para a confecção dos “cavernames”. Devem ser talhados em madeira dura como peroba, canela, ipê, pau-de-óleo, etc.

Os “talabordões” são fixados aos “cadastros” pelos “contrafortes” dos “barbados”.

A etapa a seguir é a colocação do “taboado” lateral, que também são modelados um a um, pregados superpostos nas beiradas, e com massa nesses pontos para garantir a vedação. A primeira tabua recebe o nome de “resbordo”, e as demais, apenas “taboado”. Todo material é fixado com pregos de cobre a fim de assegurar durabilidade, já que se fossem de aço, sofreriam oxidação rapidamente.

Para facilitar a fincagem dos pregos, como todas as peças são talhadas em madeiras duras, antes de pregar, são realizados furos evitando os pregos vergarem e, conseqüentemente não penetrariam na peça de madeira. Antigamente era feito tudo na pua, no braço, furo por furo; hoje já temos furadeira que facilita muito, sem cansaço, e muito mais rápido. Para isso, são utilizados vários tamanhos de pregos de cobre, usados em grande quantidade.

As tábuas do “taboado” lateral devem ter curvatura para acompanhar as curvas tanto longitudinal como transversalmente de acordo com os desenhos do “cavername”. Estas curvaturas são obtidas por um processo rudimentar e artesanal. Cada tábua é molhada, e após, colocada próxima ao fogo. Com a secagem rápida vai adquirindo uma curva. No olho prático do baleeiro é identificado o ponto certo de dar-se por concluída a curvatura de tábua por tábua. O fogo é feito na praia, com cepilho da própria atividade do baleeiro, e para molhá-las, utiliza-se água do mar.

Concluída a etapa dos “taboados” são colocados os “curvatões”, que são suportes de amarração das laterais da embarcação, completando a fixação dos bordos, e entre eles, os bancos para os remadores e demais integrantes da tripulação.

Finalmente, a baleeira recebe os componentes finais, acessórios de acabamento como os calços, algumas “ferragens”, suporte de motor, garfos para os remos, frisos ou “cordões” laterais e a pintura interna e externa.

Acabada a embarcação, é basta levar ao mar e ir a lida...

 

         



Santa Catarina, A Ilha. Virgílio Vázea

Florianópolis, 1900

Domínio Popular