O romantismo na Ilha.
Os recursos de entretenimento dos quais utilizamos hoje em dia, como: cinema, danceterias, shoppings, entre outros, o homem simples da Ilha não tinha. Para aproximar-se de quem lhe interessava, não precisava da modernidade e sim do romantismo, da mensagem poética, do uso da sedução pela poesia.
Corações ou Pão-por-Deus
Os "corações" são cartas em formato de coração com mensagens de simpatia, amizade ou de amor em que se pede em verso uma prenda ou presente, a que se dá o nome de "pão-por-Deus". O pedido é feito à pessoa, ao menos hipoteticamente, de maior poder e respeito: de admiradora para admirado; de moça para senhora; de moradora de sítio para moradora da cidade. Nos Açores é costume infantil, mas na Ilha é feito por pessoa de qualquer idade. Há registros do Pão-por-Deus apenas no Ribeirão da Ilha. A temporada do peditório termina no dia de Finados, 2 de novembro. Neste dia é comum ver-se famílias inteiras em visitas aos cemitérios da Ilha. O
Coração ou o Pão-por-Deus representa
um dos hábitos mais delicados da roça, tão cheia de mil outros
encantos na sua deliciosa simplicidade. É um coração feito de papel cetinoso e de cor, de preferência
azul, vermelho e amarelo, tendo comumente quatro faces que se justapõem
com a parte branca do lado de dentro e uma pequena franja rendilhada.
Nos mais artísticos o papel é trançado em forma de esteirinhas. O Coração obriga a um presente de 1º de novembro em
diante, e esse presente tem o nome de Pão-por-Deus. É em
quadrinhas afetuosas, escritas na face interna, que se pede a dádiva, não
pelo prazer material de ganhá-la, porém pela satisfação de ter uma
lembrança da pessoa a quem se quer bem. Os versos são meigos e
escritos em letra caprichada, miúda e redonda. Cada Coração leva
de duas a quatro quadrinhas. A gente logo o reconhece pelo estofado
farfalhante do envelope e pelo cheiro de malva ou de manjericão que
dele se desprende. Abre-se o envelope com as pontas dos dedos e tem-se em azul e verde, pendurado das suas rendas, o amável Coração.
Os versos
dizem: Lá vai o meu coração, Retratado em uma flor, Vai pedir o Pão por Deus, A quem tenho tanto amor. Lá vai o meu coração, Sozinho, sem mais ninguém, Vai pedir o Pão por Deus, A quem quero tanto bem Lá vai o meu coração, Correndo o mundo sem fim, Chega lá, bate na porta Pede o Pão por Deus por mim. Brilha o sol e brilha a lua, Brilham os lindos olhos teus, Brilhante serás em tudo, Si mandares Pão por Deus. És o mimo do Brasil, Es o amparo das flores; Manda-me o Pão por Deus, Prenda de tantos valores. Se os anjos do céu soubessem A graça dos olhos teus, Desceriam do céu à terra Para pedir o Pão por Deus. Cupido leva esta flor Entrega ao amor-perfeito, Se pedires Pão por Deus, Pede com todo o respeito. A palma de sua mão, É linda, deliciosa, Manda-me o Pão por Deus, Meu lindo botão de rosa. Se suspiros fossem flor, Eu teria lindo jardim, Pão por Deus eu te lembro, Que me mandes para mim! Um ou outro Coração tem a sua mágoa e queixa-se: Bem sei que sou infeliz, Não mereço agrados seus, Mas mesmo assim desprezada, Vou pedir-lhe o Pão por Deus. Outro procura remover obstáculos e fala imperiosamente, ao
que parece a um viúvo: Lá vai o meu coração, Todo cheio de tetéias, Mande-me o Pão por Deus. Não se ponha com idéias. Não se lembre do passado, Não mais pense em quem morreu, O Pão por Deus não demore, Quem manda agora sou eu. Este põe o seu amor acima de tudo: Os justos pedem aos santos, os santos pedem a Deus. Eu só peço ao meu amor, Que me mande. o Pão por Deus. Governa o rei o seu povo, Aos escravos o senhor, A mim somente governa, O meu lindo, meigo amor. Eu nada quero do mundo, Nada quero de ninguém, Basta aquela luz brilhante, Do olhar vivo do meu bem; Aparece, também, algum Coração pilhérico: Quem tem cabras tem cabritos, Quem tem porcos tem presuntos, Mande-me o Pão por Deus Por alma dos seus defuntos. Mande-me o Pão por Deus Não me faça sovinice Esse mal já lhe persegue, Desde a sua meninice. Uns têm rasgos a D. João: Não te peço Pão por Deus, Que o meu Pão por Deus és tu, Tu és jóia vindo do céu E teu marido um tatu. Um tatu tonto de luz, Que não sabe o teu valor, Como Pão por Deus eu quero Dar beijos no meu amor. Se muito pede o destino, Não menos pede quem quer, Deixa o teu marido lorpa E vem ser minha mulher. O despeito elogia e fere: Cabelo de ouro fino, Em cachos de diamante, Manda-me o Pão por Deus, Não sejais ignorante. Muito formosa por certo, No seu ar engalanado, O Pão por Deus que mandar, Cheira dente já estragado. A velhice tem saudades: Quem me dera, como dantes, O meu coração mandar; Pão por Deus se atropelavam Cada qual por me agradar. Dividi o co ração Por toda a parte correu, Pão por Deus já não procura Um coração que morreu. Um apaixonado apresenta desculpas e propõe o vôo para o além: No ano passado, Clarinda, Não te mandei Pão por Deus, Por que não acreditava Que os teus olhos fossem meus. Vai agora meu coração O meu Pão por Deus levar, Está pronto o nosso barco, Vamos ambos navegar. Vamos voar noutras plagas, Outros ares respirar, O teu Pão por Deus, Clarinda, Ninguém te pede roubar. O Coração que lá se vai atrás do Pão por Deus é,
em geral, um emissário discretamente apaixonado do outro coração que
ficou no peito a tremer de amor, e, muitas vêzes, ao chegar novembro,
o Pão- por-Deus foi a capela branca da aldeia, um bando alegre de
convidados e o Padre muito sério, a dizer: "Com o favor de Deus
querem casar...”
E os Pães-por-Deus continuaram a cruzar-se, perpetuando a tocante singeleza da vida campesina.
Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, vol. XXVIII. Domínio público |